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No analista Naquela tarde, Rafael chegou à sessão de análise sobressaltado. Entrou esbaforido, com aparente confusão mental, cumprimentou o analista com olhar vago, sentou-se no divã e respirou profundamente, numa tentativa quase desesperada de se recompor. - Alex, eu simplesmente estou ficando paranóico. É isso, cara, eu acho que adoeci. Faço análise há anos, tomo remédio controlado pra ansiedade e mesmo assim minha mente conseguiu me boicotar. - Como assim, Rafael? Aconteceu algo da semana passada pra cá? - Esse que é o problema. Eu apenas sinto que tem algo errado acontecendo. Não queria dar espaço pro meu arquétipo de "esquedo-macho-místico", mas, quando minha intuição fala... - E quando ela falha? - Hã? - Deixa pra lá, prossiga. - Pode parecer estranho o que eu vou te dizer, mas... eu tenho tido a sensação de que a Bruninha está comigo o tempo inteiro, sabe? Quando vou trabalhar, quando estou jogado no sofá sozinho em casa. Até mesmo quando jogo bola com os caras. Eu s...

O hábito secreto

Rubinho adentrou a pequena porta com certa naturalidade, como se assim o fizesse sempre. Percorreu o pequeno corredor de paredes úmidas, emboloradas, com rachaduras e rastros do que um dia havia sido uma pintura - e, ao final dele, avistou outro homem, que subitamente o olhara de relance. "Ufa! Não era nenhum conhecido!", pensou, soltando uma respiração forte, de alívio. Foi se aproximando aos poucos, sentindo um misto de timidez e curiosidade, perguntando-se qual falaria mais alto. Não fazia aquilo desde os tempos da escola que, aliás, não lhe serviu para muito além de concluir o ginásio e conhecer a primeira namorada (com quem casou-se e teve cinco filhos - três moleques fortes e duas belas e prendadas meninas). Mas nunca esqueceu da sensação, que guardara apenas para si. Afinal, se a rapaziada do clube ao menos imaginasse uma coisa dessas, ele jamais voltaria a ter paz. "Maricas" seria um elogio perto do que lhe chamariam. O outro continuou o que estava fazendo, ...

Diagnóstico | "Dar nome às coisas"

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Desde o princípio, antes mesmo da palavra, nosso corpo já falava. Um gesto podia ser um alerta. Um olhar, um abrigo. Um grito poderia representar a fronteira contra um perigo iminente. Mas hoje, enquanto arrancava a pele dos meus dedos até sangrar (uma mania antiga), descobri que essa dor tinha um nome: dermatotilexomania. E o que era apenas hábito obsessivo e dolorido, tornou-se coisa nomeada. E ao ganhar nome, ganhou também peso, contorno, presença. Foi aí que me perguntei: em que instante da história o ser humano decidiu batizar as coisas? Quando se deu conta de que nomear não apenas organizava a vida, mas também, de certa forma, a criava? Há quem diga que só existe aquilo que podemos nomear. O "nome" é como um sopro que arranca algo do invisível e o firma na terra. Sem ele, tudo é sombra, sem rosto ou distinção. A filosofia e a psicanálise sabem bem disso: nomear é separar sujeito de objeto, traçar fronteiras entre mim e o outro, sustentar a diferença que nos permite exis...

A arte salva

Quantas vezes a arte já te salvou? A mim, incontáveis. Ela me salva desde a infância, na verdade. Como quando era pequena e não tinha amigos, mas tinha uma TV onde assistia Chaves e Chapolin todas as tardes com a minha avó, ao chegar do colégio. Nessa época, também desenhava e escrevia. Aliás, por que será que deixamos pra trás esses hábitos de desenhar, colorir, colar, criar? Pensando bem, a sociedade não incentiva isso nos adultos porque seríamos menos produtivos para a grande roda do capitalismo. A arte me salvou aos 15, quando me descobri lésbica. Eu então passei a escutar bem alto, no meu quarto (bem estilo adolescente de filme americano, sabe?), algumas músicas que mais adiante eu entenderia como hinos da comunidade. Artistas que, assim como eu, em algum momento também precisaram escoar toda a dor do preconceito, da incompreensão, da ausência de representatividade ou mesmo da intensidade ou da confusão característica dessa fase da adolescência. Se fechar meus olhos, consigo me ve...

A colega misteriosa

Duas jovens, em meio ao burburinho das colegas que brigavam e falavam mal umas das outras na faculdade, não compreendiam uma certa moça. Ela não era alegre demais, nem triste demais. Cumpria seus deveres, chegava sempre na hora, tratava a todos com respeito e nunca se envolvia em confusões. Mas a tranquilidade dela incomodava. “Perfeitinha demais”, diziam. “Deve esconder um grande defeito. Talvez seja até uma psicopata.” Decidiram então investigar sua vida. Seguiram-na após a aula, bisbilhotaram suas conversas, observaram suas redes sociais. Até mesmo foram à sua casa, sob o pretexto de copiar um trabalho. Passadas algumas semanas, um amigo em comum quis saber: — E então? Descobriram os podres dela? As duas se entreolharam. Uma baixou a cabeça, envergonhada. A outra tentou falar, pensou em inventar uma mentira, mas suspirou e respondeu: — Pior do que isso... Descobrimos que ela é muito gente boa.

Teleférica mente 💭

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Mente teleférica Sobrevoa pensamentos psicodélicos Num emaranhado de raízes neurais em constante expansão Pensamento não pesa na cuca Ou pesa? Então por que minha cabeça dói tanto? Sim, mas ocupa espaço No lugar do plano concretizado, projetos inacabados Ao invés da disciplina, a massa cinzenta em ebulição Quem encararia, como na canção do Raul, tão angustiante iguaria? Ansiosa mente Curiosa mente Criativa mente, pelo menos Ainda que caótica mente Inquieta mente Instintivamente, quem decide devorá-la sabe Honestamente Dos possíveis efeitos colaterais Perigosamente, tal qual maniva não cozida Flor do jambu pura Forte, irrestrita, rara Fatal mente Imprevisível mente.

Fale agora ou...

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Minha questão paradoxal com a comunicação é velha. Nunca tive problemas para escrever, ao contrário. Já com o falar... O buraco sempre foi mais embaixo. Então, o que me sobra em palavras escritas, me falta em faladas. Tudo começou (ou pôde ser mais facilmente percebido) durante a primeira infância, na escola. Enquanto pais de outros alunos eram chamados por conta de brigas e outras encrencas, muito comuns nessa fase, minha mãe foi notificada algumas vezes sobre o meu silêncio. Sim. Eu simplesmente quase não falava. Lembro de ter feito algumas tentativas de entrosamento, todas frustradas. As meninas me ensinavam brincadeiras cujas regras eu esquecia e acabava perdendo e ficando triste e ainda mais amuada. Meninos riam de mim e faziam bullying com meu segundo nome e provavelmente outros motivos dos quais não consigo lembrar agora. Mas eu acho que isso não me tornava mais engraçada ou interessante, pois lembro que eles logo paravam porque eu não os enfrentava de modo algum. Meu silêncio d...