Diagnóstico | "Dar nome às coisas"



Desde o princípio, antes mesmo da palavra, nosso corpo já falava. Um gesto podia ser um alerta. Um olhar, um abrigo. Um grito poderia representar a fronteira contra um perigo iminente. Mas hoje, enquanto arrancava a pele dos meus dedos até sangrar (uma mania antiga), descobri que essa dor tinha um nome: dermatotilexomania. E o que era apenas hábito obsessivo e dolorido, tornou-se coisa nomeada. E ao ganhar nome, ganhou também peso, contorno, presença. Foi aí que me perguntei: em que instante da história o ser humano decidiu batizar as coisas? Quando se deu conta de que nomear não apenas organizava a vida, mas também, de certa forma, a criava?

Há quem diga que só existe aquilo que podemos nomear. O "nome" é como um sopro que arranca algo do invisível e o firma na terra. Sem ele, tudo é sombra, sem rosto ou distinção. A filosofia e a psicanálise sabem bem disso: nomear é separar sujeito de objeto, traçar fronteiras entre mim e o outro, sustentar a diferença que nos permite existir.

Lembrei então do filme "A Invenção da Mentira": uma sociedade distópica que desconhecia a palavra "mentira" — e, por isso, só falava a verdade. Até que um dia, um homem qualquer, sem querer, inaugurou o indizível. E quando o fez, um novo mundo se descortinou diante dele: ficção, livros, possibilidades antes improváveis. Tudo isso enquanto os outros habitantes da cidade, atônitos, tentavam explicar o até então desconhecido: “É algo que... É algo que... não é…”.

Talvez seja exatamente isso: o poder de nomear é também o de inaugurar realidades. Dar nome às dores, às manias, às emoções. Pois quando algo recebe um nome, passa a fazer sentido. "Nomeio, logo, existe". E isso não é apenas sobre linguagem, mas representa um gesto de reconhecimento. Para si e para o outro.

Quando uma dor, um hábito ou um sofrimento recebe um diagnóstico, ele deixa de ser um segredo solitário e passa a ter lugar no mundo. Não é mais “algo que não é”, mas sim uma realidade que pode ser compreendida, cuidada, acolhida. O diagnóstico é, nesse sentido, um batismo: ele não nos define por completo, mas nos dá uma chave para abrir portas antes trancadas. Nos ajuda a olhar para dentro sem nos perdermos. A contar nossa própria história com mais precisão, a reivindicar a escuta e a compreensão. O que tem nome pode (e deve) ser tema de livros, palestras, revistas, programas de TV. O que pode ser falado, pode ser reconhecido e, possivelmente, transformado.

Há cerca de 3 anos, decidi olhar pra mim com mais auto cuidado. Iniciei uma análise, enfrentei minhas sombras (pelo menos parte delas) e, após alguns eventos um tanto quanto assustadores - no trabalho e na vida pessoal - assumi, finalmente, que talvez eu tivesse mesmo TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Mas não foi (e ainda não tem sido) um processo simples.

Ao mesmo tempo em que eu vivia episódios cada vez mais frequentes de "esquecimentos" e falta de atenção e minhas dores de cabeça só aumentavam, enquanto eu me entupia de analgésicos diariamente, procurei um neurologista. Fui unicamente para falar sobre os meus quadros de enxaqueca e ele me perguntou se costumo apresentar episódios frequentes de esquecimento. 

"Oi?"

"É que seu exame de eletrocefalograma detectou um padrão muito comum em pessoas com TDAH".

Me fez, então, mais algumas perguntas sobre como havia sido minha infância, pediu relatos desses apagões de memória e vouilà: para ele, não restavam dúvidas. Ele me receitou um remédio para TDAH e eu quase dei de ombros mais uma vez. Mais uma vez? Como assim, não é algo novo, recente? Bem... A verdade é que, pelo meu histórico, sempre tive medo de um dia desenvolver alzheimer. Então, há muitos anos, lá em Belém, também procurei um neurologista - tanto pelas dores de cabeça quanto pelos "esquecimentos" frequentes. Adivinhem: foi exatamente igual. Os mesmos exames (além do eletro, fizeram muitos outros, passei a tarde na clínica em ambas as vezes) e o mesmo diagnóstico. Acontece que naquela época nem se falava em TDAH, então, eu não fazia ideia do que ele estava falando. Saí do consultório feliz, pois não havia nenhum aneurisma prestes a explodir, nenhum rastro de alzheimer ou qualquer comorbidade com a qual na época eu pudesse me preocupar.

Mas desta última vez, algo vibrou diferente dentro de mim. Eu estava vindo de um longo caminho de auto conhecimento e sabia, lá no fundo, o quanto tudo aquilo fazia sentido. Eu já não  podia mais aceitar que era simplesmente "muito  esquecida", "lesa". Foram muitos anos lidando com a crítica dos outros e as minhas próprias, com minha autoestima destruída me achando insuficiente, muitas vezes burra, incapaz. Estava cansada de não ter nenhuma perspectiva de mudança pois, afinal, "eu era assim mesmo". 

Bom, tudo ainda é muito novo e sigo aprendendo sobre esse universo da neurodivergência. Devorei um livro da psicóloga Ana Beatriz, "Mentes inquietas", tenho ouvido podcasts, pesquisado bastante na internet e lido relatos de pessoas que são como eu. Portanto, posso afirmar com segurança: muita coisa sobre mim agora fez sentido. Agora tem um nome para características que sempre foram tão minhas (e não falo apenas das negativas - TDAHs costumam ser extremamente criativos, por exemplo). Sinto que nunca antes havia conhecido e entendido tanto sobre mim. E ainda que critiquem, diminuam ou invalidem meu diagnóstico, estou feliz.

Ao contrário do que eu achava e propagava (infelizmente!), diagnósticos são libertadores e não limitantes. Libertador = "Libertar a dor". "Dar nome às coisas" não é prisão, é chave. Isso não encerra quem eu sou, muito pelo contrário: abre portas para que eu caminhe mais leve, consciente e finalmente inteira.

Se antes eu sangrava os dedos em silêncio ou me perdia nos esquecimentos, hoje sei: nada disso é apenas sombra. Tem nome, tem história, tem lugar. Uma vez tendo lugar, pode ser cuidado. E se pode ser cuidado, pode ser de alguma forma transformado.

Talvez seja exatamente o que a gente busque desde o princípio: não apenas sobreviver, mas aprender a nomear nossa própria existência para, enfim, habitá-la de verdade.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Coisas que você deve dizer para a sua alma gêmea

۝ Mundos ۝

Fale agora ou...