A arte salva

Quantas vezes a arte já te salvou? A mim, incontáveis. Ela me salva desde a infância, na verdade. Como quando era pequena e não tinha amigos, mas tinha uma TV onde assistia Chaves e Chapolin todas as tardes com a minha avó, ao chegar do colégio. Nessa época, também desenhava e escrevia. Aliás, por que será que deixamos pra trás esses hábitos de desenhar, colorir, colar, criar? Pensando bem, a sociedade não incentiva isso nos adultos porque seríamos menos produtivos para a grande roda do capitalismo.

A arte me salvou aos 15, quando me descobri lésbica. Eu então passei a escutar bem alto, no meu quarto (bem estilo adolescente de filme americano, sabe?), algumas músicas que mais adiante eu entenderia como hinos da comunidade. Artistas que, assim como eu, em algum momento também precisaram escoar toda a dor do preconceito, da incompreensão, da ausência de representatividade ou mesmo da intensidade ou da confusão característica dessa fase da adolescência.

Se fechar meus olhos, consigo me ver ruiva, bem magrinha, cabelos longos até a cintura, dançando "Try it on my own" da Whitney Houston numa "boate" (hoje chamam de "balada") bem no meio so salão. Por mais difícil de acreditar, eu sempre fui tímida mas, sinceramente, depois de algumas cervejas eu costumo esquecer disso. Gostava da sensação de liberdade que esse hit da época me trazia. Eu não precisava de ninguém pra me acompanhar. Rodopiava, sorria, enquanto as luzes coloridas giravam na pista, iluminando partes dos rostos, dos corpos de pessoas como eu - que buscavam ali refúgio, num lugar onde podíamos ser nós mesmos sem qualquer julgamento. 

Também posso dizer que a arte me salvou inúmeras vezes quando, pela minha falta de eloquência, não era capaz de expressar-me verbalmente da maneira que gostaria e então escrevia uma carta. Amores, amizades, todos que identificava como importantes costumavam receber esse agrado de mim. E, modéstia à parte, normalmente compreendiam o que eu estava tentando expressar.

A propósito, como  disse anteriormente, escrevo desde a infância. Gostaria de ainda ter um caderninho minúsculo onde escrevia poesias (curiosamente, muitas de cunho social: sobre crianças de rua e outras mazelas da sociedade). Também inventava ficção. Cheguei a escrever um livro de umas 300 ou mais páginas. É realmente uma pena que não o tenha mais! 

O fato é que a arte me salvou em todos esses momentos. Eu não conseguia fazer amizades na escola, mas me sentia preenchida através daquelas vidas sobre as quais eu escrevia. Quando eu lia para a minha prima (uma que cresceu sendo uma irmã pra mim), ela, emocionada, me pedia para eu continuar escrevendo. Alguns adultos quando, porventura, liam meus textos, ficavam espantados e também me estimulavam a continuar (jamais se deve subjugar a força que as palavras de um adulto têm sobre a mente de uma criança - o que lhe for dito, pode ter certeza, ela vai acreditar. E isso vai acompanhá-la até mesmo depois de adulta, ainda que inconscientemente). Felizmente, fui bastante estimulada nesse sentido.

A arte também me ajudou a conseguir um emprego, o melhor que já tive em minha vida, a TV Cultura. Ao passar por mim no meio do pátio da faculdade, um professor que na época era diretor da TV, me convidou - assim, sem entrevista nem nada - para trabalhar lá. Eu praticamente achei um bilhete premiado na rua (rs). Ele disse que meu texto era muito bom, que tinha uma vaga de produtora e tal e eu aceitei, óbvio. Estava terminando o período do estágio de 2 anos numa assessoria de comunicação e dessa forma não fiquei sem salário nenhum mês. 

E foi assim pude continuar sendo salva pela arte por mais... 7 anos. O tempo que trabalhei lá. Eu vivia no meio de artistas. Músicos de todos os gêneros mas, principalmente, os regionais. Os mestres do carimbó, os poetas amazônidas, os violonistas, baixistas, cantores, dançarinos, artistas plásticos, escritores e muitos outros que levavam e levam até hoje nossa cultura adiante. 

Mesmo após deixar esse emprego,  que me proporcionou experiências inimagináveis, de valor inestimável (inclusive em viagens pelos interiores do Pará, conhecendo de perto outras realidades além da minha - urbana), ainda continuei (e sigo sendo) sendo salva pela arte. Quando leio um livro (e, ainda bem, o faço com bastante frequência), me deparo com sensações e pensamentos que compartilho com o(a) autor(a). 

Sempre que descubro uma música, um cantor, cantora ou banda que me toca, entro em estado de hiperfoco. Então, me transporto para outro universo, que não é nem o dele(a), nem o de ninguém. Aliás, não se engane: NINGUÉM é detentor da arte. Nem mesmo o próprio autor. Ele pode ser detentor dos direitos autorais, mas jamais da subjetividade daquela obra. A partir do momento em que ela é lida, vista ou ouvida por outro alguém, a complexidade daquele indivíduo filtra o que foi transmitido e então é criada uma espécie de "subobra". Afinal, somos seres únicos e carregados de história pessoal.

Dessa forma, a partir do momento em que a arte ganha o mundo, ela passa a ser minha, sua, do vizinho, da mãe, do pai, do irmão e ao mesmo tempo, não é de ninguém. Joãozinho vai dizer que a música é muito deprimente, enquanto Mariazinha vai jurar que é a canção mais linda que já escutou e que isso lhe traz profunda alegria. Por mais que o autor tenha tentado transmitir uma ideia ou um sentimento, ele não pode ter a prepotência ou mesmo a ilusão de fechá-lo em um único entendimento.

Talvez por isso seja bem complicado julgar uma obra como boa ou ruim. Antes de fazê-lo, sempre me pergunto "mas qual é exatamente a proposta dela?". Porque assistir Chaves batendo no Sr. Barriga certamente não tem o mesmo intuito de Laranja Mecânica. "La La Land" não carrega a mesma ideia de "Forest Gump". As novelas da Globo não podem substituir e nem serem substituídas pelas séries americanas. Aliás, nem mesmo por novelas mexicanas, ainda que carreguem propostas parecidas - o fato de pertencerem a culturas diferentes já as diferenciam entre si.

Então, não sou dona do Belchior. Você não é dono do Raul Seixas. Belchior não é dono de "Como nossos pais". Raul não é dono de "Maluco Beleza". Tampouco "Moinho" pode ser somente Cartola ou "Andar com fé" somente Gil. Quando um artista nasce, obras nascem a partir dele. Mas quando uma obra nasce, ela é do mundo... e várias pessoas renascem junto com elas. Todos os dias.

Só eu já renasci várias vezes, inclusive agora, escrevendo esse texto após um dia terrivelmente difícil e melancólico e sei que ele não me pertence mais, pois qualquer um pode apropriar-se dele no sentido de tomar para si  seu significado. Vai atravessar quem o ler de forma bem diferente da qual o exprimi, por melhor que seja sua sensibilidade ou capacidade de interpretação de texto.

Mas, confesso, é uma sensação única quando você é capaz de tocar o outro a partir daquilo que você cria. Já tive a felicidade de fazer algumas pessoas chorarem com textos meus.  Frequentemente me arrepio e me emociono ao ser capaz de sentir a dor ou a alegria transmitidas por uma música ou um filme. No fim, isso é o que importa. Não se sua interpretação é igual a minha ou qual delas se aproxima do que o autor tentou passar. Mas sim a forma como ela nos toca. Se nos faz sorrir ou chorar, ou se é capaz de nos salvar de nós mesmos e desse mundo que, sem a arte, nada seria.


P.S.: Vi nas redes sociais que hoje, 24 de Agosto, é Dia do Artista. Quis, portanto, homenagear cada um desses seres que, encantados pelo poder da criatividade, conseguem melhorar nossas vidas. E você, me diz, quantas vezes a arte já lhe salvou?

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