No analista
Naquela tarde, Rafael chegou à sessão de análise sobressaltado. Entrou esbaforido, com aparente confusão mental, cumprimentou o analista com olhar vago, sentou-se no divã e respirou profundamente, numa tentativa quase desesperada de se recompor.
- Alex, eu simplesmente estou ficando paranóico. É isso, cara, eu acho que adoeci. Faço análise há anos, tomo remédio controlado pra ansiedade e mesmo assim minha mente conseguiu me boicotar.
- Como assim, Rafael? Aconteceu algo da semana passada pra cá?
- Esse que é o problema. Eu apenas sinto que tem algo errado acontecendo. Não queria dar espaço pro meu arquétipo de "esquedo-macho-místico", mas, quando minha intuição fala...
- E quando ela falha?
- Hã?
- Deixa pra lá, prossiga.
- Pode parecer estranho o que eu vou te dizer, mas... eu tenho tido a sensação de que a Bruninha está comigo o tempo inteiro, sabe? Quando vou trabalhar, quando estou jogado no sofá sozinho em casa. Até mesmo quando jogo bola com os caras. Eu sinto a presença dela. Se ela não estivesse viva, pensaria até em obsessão.
Nesse momento, o analista fez uma expressão ligeiramente impressionada.
- Continue...
- É como se ela tivesse um super poder, como se lesse minha mente às vezes, sei lá.
- Interessante.
- Esses dias, Alex, eu simplesmente sonhei que ela invadia minha sessão de análise.
- Bem, talvez você esteja mesmo paranóico, Rafael. Ainda não foi inventado um dispositivo capaz de ler mentes. Não que eu saiba, pelo menos.
- Eu sei que parece loucura. Mas há umas duas semanas, comentei com um colega de trabalho que minha namorada nunca tinha feito um strip-tease pra mim. É um camarada totalmente aleatório, nem conhece a Bruna. Zero chances disso chegar aos ouvidos dela e anteontem adivinha só??? Ela simplesmente me surpreendeu com um strip!!!!! Eu deveria ter ficado eufórico, aproveitado ao máximo cada momento. Mas o que eu fiz? Brochei. Tudo que eu conseguia pensar era no cara do meu trabalho.
(...)
Rafael então narrou mais algumas possíveis "coincidências" ao analista, todas envolvendo de alguma maneira a namorada. Saiu mais leve da sessão, ainda que os monstros estivessem ainda bem vivos dentro de si.
No carro
Na saída do consultório, Rafael caminhou lentamente até o carro. O corpo presente mas a cabeça rodopiando. Sentou-se no banco do motorista, respirou fundo e puxou o celular do bolso da calça. Uma ligação piscava na tela: era Ana, uma amiga de Bruna.
- Oi Rafa, tudo bem? Não sei se deveria comentar, mas… a Bruna anda estranha. Você já reparou?"
- Estranha como? — disse, franzindo a testa.
- Ah, sei lá… sempre que estamos juntas, ela fica muito no celular, às vezes parece que está esperando a resposta de alguém, monitorando algo, sei lá. Vai ver que é coisa da minha cabeça.
Rafael sentiu um frio percorrer a espinha. Guardou novamente o celular no bolso e deu partida no carro. Enquanto dirigia, um pensamento insistente tiquetaqueava na cabeça: e se não fosse apenas paranoia?
Em casa
Eram quase duas da manhã quando Bruna se levantou da cama. O quarto estava mergulhado num silêncio sepulcral, entrecortado somente pelo som descompassado e irrequieto da respiração de Rafael - que sofria desde a infância com adenoide e, ainda, com espasmos do sono devido à ansiedade generalizada.
Ela olhou para o celular dele, jogado sobre o travesseiro. Por alguns segundos, ficou parada, como se travasse uma luta interna. A tentação queimava. O aparelho estava desbloqueado — Rafael tinha o hábito de dormir olhando o celular e frequentemente pegava no sono com ele ligado.
Com mãos trêmulas, Bruna o pegou. O brilho da tela iluminou seu rosto, denunciando a mistura de ansiedade e culpa. Abriu o aplicativo e foi na lista das últimas ligações. A mais recente havia sido a de... Ana (?!). O coração disparou. Sobre o quê eles poderiam ter se falado? Ana era sua amiga e não dele. Ficou tentando imaginar algum assunto que poderiam ter em comum quando, de repente, uma sombra se moveu por trás dela.
— O que você tá fazendo com meu celular, Bruna? — a voz veio rouca, mas firme.
Ela congelou, o aparelho ainda em mãos. Não conseguiu responder. O silêncio que se seguiu foi mais devastador que qualquer acusação.
Rafael estendeu a mão, pegou de volta o telefone e o desligou. Olhou para ela sem raiva, porém extremamente decepcionado.
— Você não confiou em mim nem o suficiente pra perguntar, né?
Algumas semanas depois, no analista
Naquela tarde, Rafael entrou no consultório com um brilho diferente no olhar. Não havia pressa nos passos nem sombras no rosto. Deitou-se no divã como quem repousa depois de uma longa jornada.
— Alex… acho que finalmente estou em paz. A Bruna era paranoica, talvez por isso eu estivesse me sentindo vigiado. Eu não quis enxergar, mas hoje percebo: o que tínhamos já estava desgastado, era muita desconfiança sem motivo.
O analista manteve-se em silêncio, apenas o incentivando com o olhar para que continuasse a falar.
— Com a Ana é diferente. Ela me entende de um jeito natural, me acolhe. Parece que sempre esteve ali, esperando. Não tem cobranças, não tem perguntas invasivas. É leve. — Ele suspirou, sorrindo. — Pela primeira vez em muito tempo, não sinto que alguém está observando cada passo meu.
O relógio na parede marcou os minutos seguintes, enquanto Rafael descrevia pequenos gestos de Ana, todos envoltos em ternura. Quando saiu, a sensação era de alívio absoluto. Como se, enfim, tivesse se livrado dos fantasmas.
Naquela mesma tarde, em uma cafeteria qualquer da cidade
Ana estava sozinha em uma mesa. A penumbra cortada apenas pela luz do notebook. Uma xícara de café esquecida ao lado, o celular conectado a um fone de ouvido bluetooth.
Na tela do note, múltiplas janelas: um painel de geolocalização, registros de chamadas, notificações espelhadas de aplicativos. Pequenos ícones piscavam, como faróis em miniatura, indicando cada movimento de Rafael durante o dia. Naquele exato instante, ele acabara de sair do analista.
Ana recostou-se na cadeira, satisfeita. Passou os dedos lentamente sobre o trackpad, ampliou o mapa até fixar o ponto vermelho que pulsava imóvel na tela: a localização do consultório.
Um sorriso breve atravessou seu rosto.
No celular, uma nova mensagem ainda não enviada permanecia digitada: “Oi amor! Pelo horário, você deve estar na análise... Me liga quando sair? Quem sabe não combinamos alguma coisa pra mais tarde.”
Ana apertou o botão de enviar. O notebook continuava aberto. A tela refletindo no vidro da janela, projetando no escuro: não o rosto de uma namorada atenciosa, mas a silhueta de alguém que jamais deixou de vigiar.
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