Fale agora ou...


Minha questão paradoxal com a comunicação é velha. Nunca tive problemas para escrever, ao contrário. Já com o falar... O buraco sempre foi mais embaixo. Então, o que me sobra em palavras escritas, me falta em faladas.

Tudo começou (ou pôde ser mais facilmente percebido) durante a primeira infância, na escola. Enquanto pais de outros alunos eram chamados por conta de brigas e outras encrencas, muito comuns nessa fase, minha mãe foi notificada algumas vezes sobre o meu silêncio. Sim. Eu simplesmente quase não falava.

Lembro de ter feito algumas tentativas de entrosamento, todas frustradas. As meninas me ensinavam brincadeiras cujas regras eu esquecia e acabava perdendo e ficando triste e ainda mais amuada. Meninos riam de mim e faziam bullying com meu segundo nome e provavelmente outros motivos dos quais não consigo lembrar agora. Mas eu acho que isso não me tornava mais engraçada ou interessante, pois lembro que eles logo paravam porque eu não os enfrentava de modo algum. Meu silêncio devia ser constrangedor pra eles.

Nas aulas de educação física, certamente uma ótima oportunidade de interação, eu esperava pacientemente um a um dos meus coleguinhas ser escolhido. Sabiam que a desengonçada e desajeitada menina de óculos lilases (inclusive, por algum motivo, os guardo até hoje) era péssima nos esportes e, consequentemente, uma não tão boa aquisição para o time. Quando finalmente entrava numa equipe, percebia que me excluíam das jogadas, me gritavam comandos que mais me deixavam ansiosa que ajudavam. Era um verdadeiro terror. Sempre que eu podia, dava um jeito de escapar das aulas.

Pra driblar todo esse drama, aos 11 anos decidi que trocaria do turno da manhã para o da tarde. Somente assim consegui fazer meus primeiros amigos. Foi aí que iniciou meu desafio número 2: o que falar? Como falar? Quando falar? Talvez até hoje eu ainda não tenha essas respostas, ainda que agora eu consiga ter uma boa noção.

Carrego marcas profundas dessa dificuldade em comunicar-me através das palavras faladas. Lembro de aos 18 ter sido levada pela minha mãe a uma psicóloga (indicação de uma prima distante) devido à minha dificuldade em encarar um simples balconista de uma loja ou pedir informações na rua ou em um shopping. Também recordo de ter desenvolvido uma paranóia em relação às pessoas dos ônibus - todas me olhavam quando eu entrava e, não, não da forma que todos olhamos quando qualquer um entra. Na minha cabecinha, estavam me achando 'estranha'.

Quando meus amigos, ainda que bem legais comigo, faziam alguma piada (que nem precisava me envolver), riam ainda mais ao me olhar: "Olhem! A Flávia tá um pimentão! Meu Deus, ela vai explodir!". E, óbvio, isso me deixava ainda mais vermelha e constrangida. Todo dia era isso. Durante anos. Todos os anos da minha adolescência e início da vida adulta.

Em certa ocasião, após o falecimento de um professor nosso de física, eu fui ao colégio prestar minhas condolências e ao encontrar um outro docente, perguntei (me achando super educada) como ele estava - provavelmente sorrindo, como sempre fazia. Ele me respondeu de forma ríspida que não teria como estar bem naquela situação. Foi quando entendi, existia hora pra falar qualquer coisa, até mesmo as ditas convenções sociais.

Também teve o dia que ao ligar para a casa de um amigo (que sempre atendia o telefone, mas naquela noite havia sido a mãe dele), eu - constrangida - acabei me apresentando como Bruno (ele) e pedindo pra falar com a Flávia...

E quando, já na faculdade, contei pra alguém o apelido que tinham dado pra uma professora e depois notei que ela ficou diferente comigo? 

Ou quando, no meu tão querido emprego de produtora de um programa de TV, falei em tom de alegria que uma convidada havia desmarcado pois o marido falecera (minha cabecinha só havia computado a informação de que aquilo era perfeito pois não queríamos mais entrevistá-la). Óbvio que virou piada, né?

Aliás, por falar nessa época da TV, o ápice do meu desafio foi quando me convidaram (e eu me senti na obrigação de aceitar) a participar dos ao vivos do programa Sem Censura, como "a menina que lia as perguntas dos telespectadores". Ainda lembro bem de como meu estômago revirava dentro de mim quando caía a vinheta, anunciando que o programa estava no ar. Aos poucos, ia me reequilibrando e eu até conseguia minimamente esquecer das câmeras. Até o dia seguinte, quando o pavor tomaria conta de mim novamente... E assim foi enquanto estive lá. Era uma batalha diária. Uma deliciosa batalha, mas não menos difícil por isso.

E tantas e tantas outras histórias que só refletem o fiasco que eu sou quando quero ou preciso me comunicar falando.

Os limites da chamada assertividade sempre pareceram um tanto confusos para mim. Então, eu voltei a calar. Sentia medo de ser repreendida. Se algo me incomodava, eu não verbalizava. Criava medo de algumas pessoas como se elas pudessem me fazer muito, muito mal. Como uma criança sente medo do pai. Elegi, inconscientemente essas pessoas. Somente hoje me dou conta disso. Chefes, familiares, até namoradas. Os sintomas físicos variavam entre tremores, sensação de perigo iminente, vermelhidão no colo e no rosto, distúrbios intestinais e até gastrite nervosa.

Mas tudo isso pra chegar até aqui, o momento em que preciso fazer o que a Psicanálise chama de ELABORAR.

Acho que após 3 anos de análise, estou vivenciando uma fase interessante. Me sentindo engatinhando em um campo minado que são as palavras faladas em tempo real. Um pisar em falso e "PUFT", pode explodir a terceira guerra mundial. Mas será que não é assim pra todo mundo e esse é um fato com o qual eu preciso me acostumar? Afinal, não temos como ser assertivos 100% das vezes e ainda que conseguíssemos... ainda existiria toda sorte de pessoas e o outro é terra que não podemos controlar, não é mesmo?

Sinto que no meu trabalho tenho soltado o verbo além da conta, desde o ano passado. Tenho falado de sonho, de planos, de desejos. Tenho contado minhas angústias, minhas dores, minhas histórias de vida. Tenho anunciado meus passos, compartilhado pensamentos em voz alta a maior parte do tempo. Me sinto "verborrágica". Acho que passei tanto tempo calada, escondendo quem eu realmente era por medo de não ser aceita que hoje tá difícil de controlar.

Ainda pouco passeava com a Gaia, cachorrinha da minha namorada e parei porque tinha um rapaz mais ou menos próximo andando com um cãozinho sem guia. Como a Gaia é bem reativa, braba, parei. Outro cara que vinha na minha direção com dois pugs (cada qual em uma coleirinha) parou e disse "pode passar, seguro eles". Sei que ele entende o que eu passo pois os pugs também são difíceis, só faltam engasgar de tanto que latem desesperadamente pra qualquer um que passe por eles. Mas me surpreendi mesmo com a minha reação ao falar bem alto: "Não, moço, estou mesmo preocupada porque tem um rapaz bem ali com o cachorro solto. Se a minha morder ele, eu não vou ter culpa". Notei pelo semblante dele que adorou minha postura (quantas vezes eu não fui essa pessoa que esperava outra tomar a iniciativa de algo que eu desejava pra me beneficiar disso?). No momento em que disse isso, o rapaz do cachorro sem guia entrou no bloco e desapareceu. De certo ouviu o que eu falei e achei ótimo. Mas essa, definitivamente, não é mais a Flávia que eu convivi por quase 40 anos.

Por questões que não posso revelar (pois envolvem familiares de alguém que amo muito), me questionei recentemente o que era SER FORTE. Também levantei essa pauta com meu analista e com a RH da empresa onde trabalho, que também é psicóloga. Mas perguntei mesmo só para reforçar aquilo que eu já carrego consolidado em mim: ser forte é resistir. E resistir é deixar a vida acontecer e lidar com ela, ainda que com medo, ainda que com dúvidas, ainda que.

Ser forte não é parecer uma fortaleza enquanto por dentro tá tudo uma merda. Não é engolir o choro na frente dos outros. Não é esconder que errou. Nada disso. Ser forte é admitir que está sofrendo. É chorar quando se tem vontade, ainda que precise se afastar por alguns instantes. É perceber só depois que foi injusto ou que cometeu um erro e verbalizar isso a alguém. É enfrentar os piores medos, como eu enfrentarei hoje, ao ter a conversa mais difícil da minha vida com alguém da minha família (também irei me resguardar em relação aos detalhes). 

Mas o quê que tem a ver "ser forte" com o falar? Simplesmente TUDO. 

Enquanto eu não dizia o que me incomodava, eu não estava sendo forte e sim fraca, muito fraca. Com medo de enfrentar o outro, eu acabava não enfrentando a mim mesma. Engolia tudo calada, na tentativa de me sentir mais aceita, amada, enquanto eu não estava me aceitando, me amando. Pra não enfurecer ou entristecer o outro, eu me enfurecia e me entristecia o tempo todo. E quando ainda assim eu perdia pessoas, vinha o vazio existencial. Quem eu era sem o olhar do outro? Eu não sabia dizer. 

Por isso detestava o silêncio. Por isso tantas e tantas vezes recorri ao álcool. Às relações incompletas. Às falsas amizades. Às situações incabíveis. Por isso quando eu ficava solteira, eu me desconhecia totalmente e procurava terapia pra me ajudar na reconstrução - que nunca era completa pois, nesse meio tempo, sempre conhecia alguém e lá ia eu me jogar de cabeça em outro universo que não era o meu de verdade.

Me conhecer tem sido difícil, doloroso. Quantas vezes o silêncio durante as sessões de análise me consumiu? E a terrível agonia que sinto logo nos primeiros instantes quando preciso definir "por onde vamos"? "Como assim, você que precisa me direcionar. Aprendi assim". "Não me siga, pois estou perdida". Será? Talvez agora esteja finalmente me conhecendo, me encontrando, me bancando, me tornando FORTE. 

Nesse processo, confesso, perdi algumas pessoas. Em situações que, antes, jamais teria. Por ter me sentido na obrigação de agir de determinada maneira, quando aquela maneira ia de encontro com o meu sentimento. Titubeei por algumas horas, mas no fim resisti. Fui forte. Não dei vazão à minha tendência de querer agradar a todos e me priorizei. Senti orgulho.

Também disse meu primeiro grande não esse ano. Eu sabia que não poderia cumprir uma tarefa por motivos de saúde e me abstive de fazê-la. Também me senti péssima num primeiro momento e orgulhosa depois. Não espere que a mudança seja um evento grandioso, anunciada em letras neon: "oportunidade de fazer diferente". As pequenas mudanças acontecem no cotidiano, quase imperceptíveis e a somatória delas determinam quem somos.

E não espere que alguém te explique isso mas... a vida tem um "timing" exatamente como o das cerimônias de casamento. Quando o padre diz: "Fale agora ou cale-se para sempre", é naquele intervalo de tempo que você deve falar. Realmente, depois disso, ele os declara marido e mulher e acabou. Só um divórcio resolve. Ou alguns meses de toalha molhada em cima da cama, filhos e problemas financeiros (comumente, tudo isso junto). Brincadeira. Não sei o que é nenhuma dessas coisas. Brincadeira de novo. Bem, a hora de falar é bem específica. Não adianta ficar remoendo depois sobre o que poderia ter dito. Ainda que o diga, não terá o mesmo efeito. 

A assertividade é uma arte na qual tenho tentado me aventurar. 😉










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