Regard




O ano era 1985 e a noite era monótona para um garoto de 5 anos de idade. Estava sentado na cama dos meus pais, vendo sem o mínimo interesse a transmissão do Rock in Rio, já que naquela época eu não era muito fã de Rock. Era pura falta do que fazer, enquanto esperava que meu pai chegasse do trabalho para brincar comigo. Enquanto isso, minha mãe tentava fazer com que meu irmão dormisse, o que era uma tarefa extremamente difícil – ele só chorava. Com minha mãe dedicando-se plenamente ao meu irmão insone, eu estava tecnicamente sozinho em casa. Sozinho e inquieto. Vagava entre o quarto com o Rock in Rio e a sala escura por onde meu pai deveria entrar.

Eis que, em uma dessas idas e vindas, notei algo diferente na sala tomada pela profunda escuridão da noite: um olho amarelo me fitava. A luz fraca do corredor não era suficiente para me dar mais detalhes. Só via, sobreposto à parede escurecida, aquele estranho olho brilhante. Era amarelo-ouro, maior do que seria um olho humano àquela distância. Fiquei assustado, pensando ser um ladrão. Fui falar com a minha mãe e, ao entrar no quarto onde ela estava, acordei o meu irmão. Recebi uma bronca por tê-lo acordado e uma explicação lógica para o olho. “Era uma luz”, ou “o reflexo de um poste alaranjado”. Nada julgado grave o bastante pra que a minha mãe saísse de perto do meu irmão. Vi que realmente estava sozinho com a estranha luz.

Meus pais já haviam me convencido de que fantasmas e monstros que povoam as mentes infantis não existem. Com isso, era de vivo que eu estava com medo. Pra mim, aquilo era um ladrão e era eu quem teria de lidar com o indivíduo. Para minha sorte, meu pai comprara, alguns dias atrás, duas réplicas de armas da Primeira Guerra Mundial em uma embaixada, ambas extremamente realistas. “Armado” até os dentes, fui até a entrada do corredor e fiquei lá um tempo, encarando o olho. Achei estranho aquele ladrão que não se mexia. Passou o tempo, e tudo aquilo me cansou. O Rock in Rio estava até mais interessante; voltei pra frente da televisão. Pouco depois, meu pai chegou, acendeu a luz da sala e o olho amarelo sumiu. Empolgado, contei a história a ele, que teve a mesma opinião da minha mãe. Acho que por eles não acreditarem, com o passar do tempo, fui tomando um certo pavor da história e da sala escura. Me convenci de que não era um ladrão; provavelmente não seria coisa deste mundo. Por força de meus pais me levarem até a sala à noite e mostrar-me toda sorte de reflexos luminosos ali, acabei aceitando que o olho não era nada além de um reflexo de um poste. Só para “resolver”. Eu sabia que não era. O olho brilhava como uma fonte de luz. Não como um reflexo. E a história morreu aí.


Mas, um dia, ela ressuscitou. Passaram-se treze anos. Aprendi a falar francês. Em 1998, estava vendo umas fotos antigas, dentre as quais uma foto da parede onde o olho apareceu. Vi que nessa parede, provavelmente não no lugar exato onde havia visto o olho, estavam dois quadros. Um deles retratava uma floresta de árvores mortas, o outro, parecia uma pedra com um morcego e uma lua; algo bem abstrato. Esses quadros sempre estiveram lá em casa e ainda hoje estão. Sempre gostei deles, desde criança. Mais uns anos se passaram e, um dia, meu olhar novamente caiu sobre um dos quadros quando andava pela sala. Era o quadro do morcego. Mais uma vez, fui olhar; analisar; tentar achar algum sentido; alguma ordem no caos... Pela primeira vez, me atentei ao nome do quadro. Imediatamente fui tomado por uma sensação glacial. A mesma que havia sentido tantas vezes após aquela noite de 1985.  Em letras pequenas, discretas, escritas a lápis na sua base eu lia: “Um regard dans la nuit”. Um olhar na noite. E a certeza de que, da mesma forma que eu observo o quadro, talvez ele também nos observe... 



Dom Rapha




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Esse excelente conto foi escrito especialmente para o Escarlate por Dom Rapha (Pepperman's Pepperpot).  Gostaria de dizer que para mim foi uma honra pintá-lo em meu cantinho. O li em poucos minutos, tamanho é seu poder de sedução. Simples, bem escrito e com um certo grau de suspense que consegue se prolongar até o último minuto. Parabéns, Rapha.

Quem mais puder/quiser, conte-me um conto. Ficarei muito feliz em lê-lo, divulgá-lo como fiz com Regard (olhar, em francês).

Feliz Páscoa a todos!

Comentários

Sara disse…
Muito bom mesmo Flávia, "devorei"...dá vontade de ler mais como estes...beijinhos
Dom Rafa disse…
Bom ou ruim, fico feliz por você ter gostado e agradeço seu post! =) Uma honra aparecer no seu cantinho especial! Bem oportuna a foto que você arranjou pra abrir o post... hehehehe Beijos, Flávia! ;)

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