De repente, classe C
Sou ex-pobre. Todos querem me vender geladeira agora. O trem ainda
quebra todo dia, o bairro alaga. Mas na TV até trocaram um jornalista
para me agrada.
Eu me considerava um rapaz razoavelmente feliz até descobrir que não sou mais pobre e que agora faço parte da classe C. om a informação, percebi aos poucos que eu e minha nova classe somos as
celebridades do momento. Todo mundo fala de nós e, claro, quer nos
atingir de alguma forma.
Há empresas, publicações, planos de marketing e institutos de pesquisa
exclusivamente dedicados a investigar as minhas preferências: se gosto
de azul ou vermelho, batata ou tomate e se meus filmes favoritos são do
Van Damme ou do Steven Seagal. (Aliás, filmes dublados, por favor! Afinal, eu, como todos os membros da
classe C, aparentemente tenho sérias dificuldades para ler com rapidez
essas malditas legendas.)
A televisão também estudou minha nova classe e, por isso, mudou seus
planos: além do aumento dos programas que relatam crimes bizarros
(supostamente gosto disso), as telenovelas agora têm empregadas
domésticas como protagonistas, cabeleireiras como musas e até mesmo
personagens ricos que moram em bairros mais ou menos como o meu. A diferença é que nesses bairros, os da novela, não há ônibus que demoram duas horas para passar nem buracos na rua.
Um telejornal famoso até trocou seu antigo apresentador, um homem fino e
especialista em vinhos, por um âncora, digamos, mais povão, do tipo que
fala alto e gosta de samba. Um sujeito mais parecido comigo, talvez.
Deve estar lá para chamar a minha atenção com mais facilidade.
As empresas viram a luz em cima da minha cabeça e decidiram que minha
classe é seu novo alvo de consumo. Antes, quando eu era pobre, de certo
modo não existia para elas. Quer dizer, talvez existisse, mas não tinha
nome nem capital razoável.
De modo que agora elas querem me vender carros, geladeiras de inox,
engenhocas eletrônicas, planos de saúde e TV por assinatura. Tudo em
parcelas a perder de vista e com redução do IPI. E as universidades privadas, então, pipocam por São Paulo. Os cursos
custam R$ 200 reais ao mês, e isso se eu não quiser pagar menos,
estudando à distância.
Assim como toda pasta de dente é a mais recomendada entre os dentistas,
essas universidades estão sempre entre as mais indicadas pelo Ministério
da Educação, como elas mesmas alardeiam. Se é verdade ou não, quem pode
saber?
E se eu não acreditar na educação privada, posso tentar uma universidade
pública, evidentemente. Foi o que fiz: passei numa federal, fiz a
matrícula e agora estou em greve porque o campus cai aos pedaços. Não
tenho nem sala de aula.
Não que eu não esteja feliz com meu novo status de consumidor, não deve
ser isso. (Agora mesmo escrevo em um notebook, minha TV tem cem canais
de esporte e minha mãe prepara a comida num fogão novo; se isso não for
felicidade, do que se trata, então?)
O problema é que me esforço, juro, mas o ceticismo ainda é minha
perdição: levo 2h30 para chegar ao trabalho porque o trem quebra todos
os dias, meu plano de saúde não cobre minha doença no intestino e morro
de medo das enchentes do bairro.
Ou seja, ao mesmo tempo em que todos querem me atingir por meu razoável
poder de consumo, passo por perrengues do século passado. Eu e mais de
30 milhões de pessoas -não somos pobres, mas classe C.
Deixa eu terminar por aqui o texto, porque daqui a pouco vão me chamar
de chato ou, pior, de comunista. Logo eu, que só li Marx na versão
resumida em quadrinhos. Fazer o quê, se eu gosto é de autoajuda?
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Comentários
Sobre o post do momento: Está tudo dito. Muito bom!
Já gostei da nova fase amiga, adoro quando você coloca boas leituras aqui.
Não some ok.
2 Beijos