A epifania e meu processo de "recordar, repetir e elaborar"


É interessante (eu diria até surpreendente) como funciona um processo de análise. Repare bem: eu disse "um processo" e não "o processo" pois, naturalmente, só me cabe o lugar de fala do ponto de vista da minha vivência. E do lado de cá, tá cada dia mais assustador. De um jeito bom. Eu acho.

Primeiro que, de uns tempos pra cá, meus sonhos tem sido mais fáceis de interpretar - ou sou eu que tenho conseguido extrair mais informações do meu inconsciente através deles. Memórias da minha infância e adolescência  tem sido destravadas, aos poucos, como um ouvido que, após um forte resfriado, de repente "desentope" nos permitindo voltar a ouvir normalmente. Sendo que antes nem tínhamos percebido qualquer prejuízo na audição.

Outra descoberta bem significativa que tive foi a profunda mágoa em relação ao meu pai, coisa que jamais passara pela minha cabeça ao longo destes 39 anos. Enfim, sem aprofundamentos nesse sentido. Pois quero mesmo falar sobre uma epifania que tive outro dia.

Etimologicamente, "epifania" vem do grego epiphanéia, cujo significado literal seria  “manifestação” ou “aparição”. Pela ótica da espiritualidade, este termo parte da ideia de revelação. Já do ponto de vista filosófico, epifania significaria algo como uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas. Ou considerar algo como solucionado, esclarecido, completo.

Gosto muito de beber de várias fontes e criar algo novo a partir disso. Portanto, fico com o significado dessa terminologia pelo pressuposto da Literatura: "forma de mostrar um conceito". Quando o autor produz um texto capaz de transmitir um entendimento completo das suas ideias. É o que me proponho a fazer a partir daqui.

Pois bem, alguns aspectos da minha vida me parecem um tanto quanto fugazes. Nunca segui um caminho só, nem profissionalmente, nem religiosamente, nem filosoficamente, politicamente ou amorosamente. Claro que mantenho direcionamentos, padrões, detalhes de minha personalidade ao longo dos anos. Mas, nunca tendo sido adepta da síndrome de Gabriela ("eu nasci assim, eu cresci assim"), acabo me identificando bem mais com a tal metamorfose ambulante da qual falava Raul.

Devido a essa característica, ficou - possivelmente - um pouco mais complicado de perceber minhas oscilações emocionais. Num dia, tristeza profunda, sensação de desistência total, no dia seguinte "a vida é bela e tudo vale a pena. Uma conhecida percebeu, me notificou em tom de brincadeira e eu dei de ombros. Estava vivenciando o luto de um relacionamento àquela altura e muita coisa já não estava fazendo muito sentido mesmo.

Minha namorada, com quem estou há 8 anos, me revelou algumas vezes em tom de súplica: "não sei se amanhã você vai acordar me amando, feliz com a nossa vida ou insatisfeita e distante emocionalmente". Sempre terceirizando nossos problemas (um recurso cerebral pra economizar energia, segundo a neurociência), eu preferia acreditar que a culpa era dela e de algumas de suas características que me incomodavam à buscar a resposta em mim.

O fato é que, voltando do supermercado, no meio de uma tarde de sábado, surgiu do nada na minha mente uma informação - tipo uma aparição mesmo. Foi tão estranho que até poderia dizer que realmente carrega algo de sobrenatural. Mas acredito mais na hipótese de que meu processo de análise está avançando a passos largos. A informação foi:  "eu me  aproximo e me afasto emocionalmente das pessoas, repetindo um padrão da infância, em relação ao meu pai que sumia durante anos e retornava como se nunca tivesse partido".

Sístole e diástole. Ação e reação. Ida e volta. Eu fiquei em choque naquele momento. Não soube de imediato se estava ficando maluca ou se minha mente estava criando coisas. Acontece que fez tanto sentido que, após segundos de olhos arregalados e a Fernanda me perguntando se estava tudo bem, eu finalmente verbalizei para ela e estava feito. Não era mais um mero devaneio. Agora era uma verdade dentro de mim.

Cheguei em casa e a única coisa que consegui fazer até o final daquela tarde foi pesquisar. Fui finalmente atrás de um texto do qual meu analista já tinha me falado, "Recordar, repetir e elaborar (1914)" - onde Freud investiga a natureza da repetição de traumas e experiências passadas na mente do paciente durante o tratamento psicanalítico. 

Ao que me parece, algumas pessoas repetem padrões de comportamento e reações emocionais semelhantes aos eventos traumáticos do passado, numa tentativa de dominar ou quem sabe compreender tais experiências. 

Segue um trecho do texto original: "...é lícito afirmar que o analisando não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido, mas sim o atua. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete, naturalmente sem saber que o faz."

No livro “Além do Princípio do Prazer” (1920), Freud compartilha uma análise que fez acerca de uma brincadeira de seu neto -  que jogava um carretel para longe e o puxava de volta, repetindo “fort” (fora) e “da” (aqui). Para ele, aquilo representava a elaboração do menino sobre a ausência e o retorno da mãe. 

O termo, introduzido pelo autor na referida obra, é utilizado até hoje pela Psicanálise e é visto como um exemplo de como as crianças começam a entender e a simbolizar a ausência e a presença, um passo crucial no desenvolvimento psíquico. Essa brincadeira ilustra bem a capacidade humana de transformar experiências dolorosas em algo manejável através da simbolização.

Uma saída para escaparmos desse ciclo de representação e repetição pode estar no processo de análise - como o que vem acontecendo comigo. Afinal, como mudar algo que nem sabemos que existe? É desbravando e jogando luz sobre os escombros do inconsciente que elaboramos psiquicamente nossas dores, até então "desconhecidas". Eu jamais poderia me curar de uma mágoa em relação ao meu pai se não tivesse me dado conta dela.

Sigo ruminando essa epifania até o momento. Me perguntando como algumas de minhas relações de amor e de amizade sobreviveram ao longo de todos esses anos de sístoles e diástoles. Quantas pessoas não ficaram pelo meio do caminho, interpretando o primeiro afastamento como definitivo e sem intenção alguma de lutar por alguém que aparentemente não fazia tanta questão. 

O fato é que alguns ficaram e isso talvez isso me mostre que possuo qualidades que valem a pena, apesar dos eventuais afastamentos. Ou quem sabe eu simplesmente reproduza esse comportamento apenas com algumas pessoas e poupe outras, justamente as que permaneceram. Vai saber. Me parece que ainda há um longo caminho pela frente. E o que vou fazer com isso, ainda não faço a menor ideia. Mas, como diria o Alisson (meu analista), "e será que precisa fazer algo com isso, Flávia?". Por hora, estou bem feliz com a minha epifania e agradecida pela oportunidade que estou tendo de elaborá-la.


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