A cocriação e a autorresponsabilidade

Ontem a sessão de análise foi diferente. Iniciei contando coisas boas, avanços íntimos e novidades empolgantes. Desembestei a falar por uns vinte minutos com uma energia e um vigor que normalmente eu não tenho (na verdade, não tenho tido). Ao fim, concluí que algumas dificuldades encontradas ao longo do percurso revelaram-se como um jeito torto de vencer. Meu analista me questionou o que seria o "torto" para mim e, depois de minha explicação, me devolveu um silêncio desconfortável.

Após alguns segundos (ou minutos que pareceram horas), eu soltei: "É, hoje eu só tenho coisas boas para falar". Silêncio novamente. Até que ele começou: "Flávia, por que você acredita que esse espaço aqui é só para trazer coisas ruins? Se fosse em uma sessão presencial, só esses 20 minutos iniciais teriam sido o suficiente e eu teria te cortado e  dispensado em seguida". Fiquei sem entender. 

O feedback que ele me deu na sequência sobre o meu processo de análise foi bem positivo (apesar de inesperado), mas explicativo. Não vou compartilhá-lo na íntegra (por ser algo íntimo), mas farei um briefing com o que pode servir para quem, porventura, ler este texto.

Bem, fazer análise ou qualquer tipo de terapia - penso eu - não se resume a narrativas traumáticas, tristezas e problemas. O setting analítico não é como um diário onde você apenas narra como foi o dia ou a semana. Tampouco um depósito de frustrações (ainda que exista a catarse e eu, particularmente, ame o conceito). Ele vai muito além.

O processo de análise é exatamente isso, um processo, cujo resultado pode (quando bem sucedido) alterar percepções acerca de si, de outras pessoas e de situações. É possível que comecem a vir à tona sentimentos e lembranças (tem acontecido muito comigo, inclusive!)  enquanto são desfragmentadas, aos poucos, as resistências impostas pelos nossos mecanismos de defesa. Aliás, quase tudo é sobre esse último.

À medida que a transferência* acontece, um verdadeiro jogo de destruição versus construção começa. Num dia você chora, no outro você ri, no outro você silencia e no seguinte fala pelos cotovelos. Pode acontecer de você se perder ao longo do caminho e tudo bem. Diferentemente de outras técnicas terapêuticas, nessa não existe um padrão pré-estabelecido - apenas sinalizadores. A Psicanálise considera, respeita e trabalha com a individualidade de cada um e, portanto, pede um manejo diferente em cada caso.

O fato é que, por experiência própria, quando você se dá conta, seu olhar já mudou e mesmo que você olhe para trás, não é capaz de perceber em que momento isso começou a acontecer. Não dá para dizer que eu cheguei onde queria. Primeiro porque eu ainda estou descobrindo minhas linhas de chegada (já sei algumas...) e segundo porque o pronto e acabado não existe. Mas confesso (e disse isso ao meu analista) que já estou satisfeita com o lugar que cheguei - após quase 2 anos do início da análise.

É muito bom quando as resistências começam a ser derrubadas e alguns padrões de pensamento/comportamento vão sendo desconstruídos. E por falar em padrões, existem dois bem difíceis de quebrar: o de culpar o outro e o de reclamar. Mesmo os que já entenderam que o caminho do crescimento deve ser autocentrado precisam estar bem atentos o tempo todo, para não recair sobre essas tendências humanas.


Cocriação

Antes de mais nada, gostaria de dizer que concordo plenamente com a célebre frase de Shakespeare, extraída da peça "Hamlet", que afirma haver mais mistérios entre o céu e terra do que sonha nossa vã filosofia. Pra mim, a humanidade ainda se dará conta de que ciência e espiritualidade na verdade deveriam caminhar juntas e cindi-las por puro medo ou preconceito é besteira.

Mas nem vou entrar no mérito das crenças porque cada um tem a sua, não é mesmo? Ou não tem nenhuma e tudo bem também. Vou me ater ao que nós humanos somos capazes de comprovar.

Nesse caso, existe uma teoria que aborda a influência dos pensamentos sobre a realidade pessoal. Ela se chama "Teoria da Autoeficácia" e foi proposta por Albert Bandura, renomado psicólogo canadense. Ela propõe que a confiança de uma pessoa sobre sua capacidade de alcançar sucesso em uma determinada situação ou de realizar uma tarefa específica pode influenciar no resultado.

Em outras palavras, se alguém acredita que é capaz de superar um obstáculo, é mais provável que se esforce e persista na busca de soluções. Por outro lado, se a pessoa duvida de suas habilidades ou se concentra nos aspectos negativos de uma situação, pode sentir-se desmotivado e menos propenso a agir de maneira eficaz. 

Tudo isso pode acontecer tanto de forma consciente quanto inconsciente (mas imagino que aconteça mais de forma inconsciente pois o autoconhecimento não é algo estimulado em nossa sociedade).

Além da teoria da autoeficácia, outras abordagens psicológicas (como a psicologia positiva e a terapia cognitivo-comportamental) também exploram como os pensamentos e as crenças podem influenciar na percepção da realidade e no bem-estar psicológico das pessoas. Essas teorias enfatizam a importância de desenvolver pensamentos mais adaptativos e construtivos na promoção de uma maior resiliência e melhor qualidade de vida.

Como já confessei, vou além da consciência individual e acredito realmente na existência de uma energia universal que une a humanidade e tudo que existe, cuja manifestação se dá em fenômenos cotidianos imperceptíveis aos olhos céticos - como quando pensamos em uma amiga e ela manda mensagem em seguida ou como quando sonhamos com um fato e ele acontece igual, com a mesma riqueza de detalhes ou - por fim - quando acreditamos tanto em uma possibilidade que ela se materializa tempos depois.

Enfim, mas o fato é que para a Ciência o que pensamos rege grande influência sobre nossas vidas. Então, de certa forma, cocriamos sim nossa realidade! Com ou sem a tal energia universal. 

Tá, mas onde eu quero chegar com tudo isso? E por que iniciei este texto falando sobre meu processo analítico?

Pois bem. Lembra quando eu soltei um: "só tenho coisas boas para falar hoje"? Eu refleti bastante quando acabou a sessão. Isso revelou uma verdade sobre mim que deve ser também a de quase todo mundo. Falando parece até loucura, mas: damos mais valor ao negativo do que ao positivo. Sim, é isso mesmo! Valorizamos mais o que dói, o que machuca, o que entristece. É como se não tivéssemos sido programados para a felicidade plena e tudo que se aproxime disso assuste ou se torne estranho quando sustentado.

Inclusive, isso explicaria porque notícias ruins chamam mais atenção do que as outras (e falo isso com propriedade pois existem estudos que comprovam e eu tive acesso a eles durante a faculdade de Jornalismo).

Esquece aquela história de positividade tóxica porque eu também a detesto! Os sentimentos ruins também têm um papel importante em nossas vidas, óbvio. Mas já repararam que os sinais são claros em relação à fixação que temos pela dor? Saca só algumas frases populares:

"Quando a esmola é grande, o santo desconfia"

"A gente aprende mesmo é pela dor"

"Esse aí já sofreu muito, merece ser feliz"

"Tá tudo dando tão certo que tô até com medo"


Percebe o que eu falei? É como se precisássemos estar em sofrimento sempre, porque não somos dignos de paz e felicidade. Ou, se para sermos felizes, precisássemos primeiro sofrer muito.

Se é um sentimento presente no inconsciente coletivo, talvez esteja mais do que na hora de ser desconstruído. E acredito que a melhor forma de fazer isso é cultivando a autorresponsabilidade. Afinal, é muito fácil maldizer a tudo e a todos e não assumir a culpa de nada, não é mesmo? 


Autorresponsabilidade


Chamamos de autorresponsabilidade a capacidade de assumir a responsabilidade por tudo que nos acontece. Isso não significa que não existem vítimas ou que a vítima tenha culpa em casos de abuso ou coisas do tipo. Não enverede por esse lado! Mas ainda em casos extremos como esse (que provavelmente necessitaria de intervenção terapêutica) e principalmente em situações do cotidiano, devemos fazer a seguinte reflexão: "O que desse cenário eu sou capaz de controlar?" A resposta dificilmente seria outra: "minhas próprias ações e meus sentimentos acerca do que aconteceu".

Não dá para controlar o que chefe, marido, esposa e filhos dizem ou fazem. Nem dá para evitar que um louco avance quando o sinal está fechado para ele  em uma via movimentada. Mas podemos usar cinto de segurança. Podemos trabalhar nossa direção defensiva. E podemos optar por ir de trem, de ônibus, de carona, de bicicleta. Ou não ir. Ou ir e sair em um horário com menos trânsito.

"Ah, mas aí isso, ah, mas aquilo..." Eu sei que é fácil falar. Também sei que qualquer dor é passível de ser controlada quando ela dói no outro e não na gente. O que estou propondo aqui é que façamos o exercício diário de evitar culpabilizar o mundo ao nosso redor sobre frustrações e infelicidades que são nossas.

Se a convivência tá difícil, afaste-se. Se não tem como se afastar fisicamente, faça isso emocionalmente. Se não consegue, terapia. O segredo é não se conformar nunca e evitar adquirir a síndrome de Gabriela "“Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim, Gabriela...”, em referência à música de Dorival Caymmi, tema da novela do Jorge Amado.

Tudo isso para concluir que eu, apesar de eu ter feito todos os tipos de terapia possíveis desde os 18 anos (entre idas e vindas) e estar em análise há 2, ainda recaio sobre esse padrão humano de reclamar/culpar o outro.

Ainda assim, pedi ao meu analista licença para uma última catarse, que durou alguns minutos ("posso reclamar um pouco? Eu sinto que preciso", disse). 

Foi então que ele finalizou a sessão com alguma frase homônima à homérica citação de Sigmund Freud: "Qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?", no famoso corte lacaniano - que ele domina tão bem (para minha felicidade ou desespero...rs).

No mais, façam terapia (de preferência, análise), tomem bastante água e cuidem com carinho daquela pessoa que está sempre com você - desde o dia do seu nascimento, até a hora da sua morte. Aquela que te acompanha à escola, ao trabalho, às festas, ao banheiro... aquela que te retorna o olhar sempre que você se olha no espelho. :)




*Para Sigmund Freud, a transferência ocorre quando o analisando (paciente) reproduz seus padrões de pensamento e comportamento em direção ao analista



O Que Você Criou

música de Dani Black

Nem que a morada do invisível

Faca o possível pra te proteger

O problema que você criou

É o problema que você vai ter

Se acreditou bem lá do fundo

É esse o mundo que você vai ver

Pense bem

O que você criou é o que você vai ter


Tão natural o movimento

De se apegar à própria invenção

Já que chorou e sofreu muito

Arquitetando essa ilusão

Mas será mesmo isso preciso

Ou só um peso que te faz sofrer

Pense bem

O que você criou é o que você vai ter


A estrada desenhada

É muito estreita eu não vou passar

As portas desejadas

Estão fechadas eu não posso entrar

É tudo tão difícil

Ou esse é o vício que você quer ter

Pense bem

O que você criou é o que você vai ter


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