Alma caótica

 

A sala era pequena, porém bastante acolhedora. Tinha um sofá gigante, preto, com muitas almofadas coloridas. Havia também um puff triangular bege e um divã vermelho. Só esses móveis já ocupavam quase todo o ambiente. Pelo menos a parte transitável. Pois haviam livros, muitos livros em prateleiras. Marcela observou que nem todos eram sobre Psicanálise. A analista lia literatura nacional e internacional. Tinha cordel, ensaios contemporâneos, mitologia, até poemas. 

Durante uns cinco minutos Marcela permaneceu em silêncio, captando a energia do lugar. Certamente não voltaria caso sentisse algo ruim ali. Aliás, aprendera isso com seu marido, Carlos, que era muito espiritualizado. Ele não costumava nem receber pessoas em sua casa, pois sabe-se lá com que energia poderiam entrar, não é mesmo? De raiva, de inveja, de sexualidade em desequilíbrio. Era melhor evitar.

- Podemos começar? - Perguntou Marcela, já um pouco desconfortável com o silêncio.

- Acha que ainda não começamos? - provocou a analista.

- Ué, ainda não dissemos nada.

- Em uma sessão de análise, o silêncio também diz coisas. Às vezes até mais do que as palavras.

- Hum.

- Mas me diga, o que lhe traz aqui?

- Então... eu sou casada há 5 anos. Não temos filhos. Ainda. Ele diz que essa é uma decisão muito complexa, para isso temos que estar muito bem alinhados... é que... a gente briga muito, sabe? Por isso eu achei que talvez vir aqui pudesse ajudar.

- Então o seu casamento está em crise?

- Não. Não é isso... nós brigamos bastante, mas sempre foi assim, desde que nos conhecemos.

- O que espera do processo da análise, Marcela?

- Espero aprender formas de ser uma pessoa mais fácil.

- Você se considera uma pessoa difícil?

- Sim. O Carlos, meu marido, sempre me diz que eu sou muito difícil de lidar. Que muito provavelmente ninguém mais me aturaria como ele.

- E você concorda com ele?

- Ah... eu... às vezes acho que ele pode ter razão sim. Eu tô sempre insatisfeita. Nada pra mim está bom. Não me contento com as bençãos que recebo do universo. Tô sempre trazendo energia negativa pra dentro de casa, pra nossa relação.

- Você pode me dar um exemplo, pra eu entender melhor?

- É que é tanta coisa! Vou tentar. Bem, por exemplo, meu sonho sempre foi ser mãe. Eu sinto que nasci pra isso, entende? Mas ele, mesmo dizendo querer, não consegue tomar essa decisão. Ele sabe que eu já tô pra fazer 40 e daqui a pouco talvez nem consiga mais. Acontece que os dois tem que querer, não é mesmo? Eu não posso fazer um filho sozinha e nem obrigá-lo a querer ser pai. Então eu vou espero. Enquanto isso o tempo vai passando...

- Deixa eu ver se eu entendi, Marcela. Você disse que ele reclama de você viver insatisfeita e você acredita que ele pode ter razão, certo? Mas o exemplo que você me deu tem a ver com um sonho de vida. Não é sobre colocar ou não tapete na sala ou escolher novas cortinas pro quarto. Se você tiver a maternidade como um plano de vida, talvez deva conversar mais seriamente com ele e dar um tempo para que ele tome uma decisão. Do contrário, essa relação estará naturalmente fadada ao fracasso.

- Nem pensar! Ele já me chama de manipuladora! Vai dizer que estou colocando ele contra a parede, forçando ele a decidir, pedindo pra ele escolher entre isso e o nosso casamento!

- Entendi. Mas, no caso, ele pode ter filhos quando decidir. Pro homem é assim, né? Mas pra nós, existe o relógio biológico.

- Não. Não é bem assim, ele sempre apoiou meus sonhos. Olha só. Por exemplo, eu adorava jogar futebol. Quando ele me conheceu, inclusive, foi assim. Os times se revezavam pra usar a quadra lá do meu condomínio. O time dele quase sempre jogava depois do meu e ele ficava lá assistindo. Com o tempo, ele começou a torcer por mim. E quando meu time ganhava, ele me dava algum presente. Às vezes flores, às vezes chocolate.

- Você disse que adorava jogar. Você parou?

- Ah, eu dei uma parada sim. Sabe como é casamento, né? Ele trabalha o dia inteiro e eu cuido da casa. O único momento que temos é exatamente à noite, quando rolam as partidas de futebol. Então, acabo optando por ficar em casa com ele. Mas ele sempre me incentiva, compra camiseta do meu time do coração, joga comigo nos finais de semana, assiste todos os jogos do Mengão.

- Sei... mas, se você quiser ir, tudo bem por ele, né? Alguma vez você já foi depois que casou?

- Claro que já!

- E vocês nunca brigaram por conta disso?

- Ah, não foi por conta do futebol exatamente. É que ele combate bastante o machismo, sabe? Ele é bem diferente dos outros homens. Ele até milita a favor do feminismo nas redes sociais. Então, ele me fez entender que isso era como reproduzir um comportamento masculino que normalmente desagrada as esposas. Eu concordo com ele.

- É um esporte, Marcela. Acredito que o que incomode as esposas seja o cara deixar de cumprir com as obrigações dele como marido, como não honrar com algum compromisso, um jantar que tenham marcado, por exemplo, pra ir jogar futebol. Ou, muitas vezes, usar o futebol como desculpa para não ter uma conversa mais séria. Ou, na pior das hipóteses, mentir que é futebol quando, na realidade, é uma traição.

- É, pode até ser, mas já disse que ele não me proíbe de ir. Eu que entendi que num casamento deve haver concessão de ambas as partes.

- Exatamente. E no que ele cede?

- Ah, ele cede bastante. É justamente por isso que eu tô aqui, sabe? Sou casada com um cara diferenciado. De esquerda, como eu. Que defende o feminismo. Espiritualizado, que frequenta um templo religioso toda semana. Que tem a paciência de me faz entender a perspectiva dele e eu tô sempre insatisfeita. Ele acha até que eu posso ter algum diagnóstico. Aliás, você faz isso? Você conseguiria me di...

- Não. Sou uma psicanalista. Não trabalho com diagnóstico. 

- Ah...

- Mas eu ainda não entendi por que você diz que vive insatisfeita. Consegue me explicar?

- Vou tentar. Bom, eu sinto como se minha vida estivesse incompleta. Não sei se é essa questão de ainda não termos filho... e eu acabo jogando tudo pra cima dele, entende? Minhas frustrações. Tipo, eu sempre tive mais libido que ele, desde o começo. E depois que casamos ficou ainda mais gritante nossa diferença. Eu chego a me sentir mal de procurá-lo. Uma vez ele até me disse que viemos em corpos invertidos, era para eu ser o homem da relação.

- Me parece algo natural desejar ter relação com o seu parceiro. Não? Qual a frequência de vocês? E o quê para você seria ideal?

- Bom, se eu deixar, ele nunca me procura, praticamente. Diz que ele precisa que me admirar para sentir tesão. E eu não ajudo, né? Tô sempre problematizando tudo...!

- Mas e quanto a frequência? ...

- Vixe! Se eu não fizer nada, leva meses! Um, dois, três. Nunca contei, mas sei que demora. Às vezes eu dou uma forçada na barra, assim, não forço o ato em si! Mas eu compro uma lingerie nova, ou mostro algum filme mais picante pra ele e acaba rolando... 

- Entendi. E como você se sente nessa posição de sempre procurá-lo?

- Ah, mal. Acho que não sou uma mulher muito ... interessante. Talvez se eu mudar meu jeito, ele me veja com outros olhos. Comece a me admirar e me querer novamente, como quando nos conhecemos.

- ...

- É. Eu exagero demais nas coisas. Eu cobro demais, eu sinto demais. Acho que sinto falta de quando tinha mais amigas também. A vida adulta, você sabe acaba afastando os amigos. Cada um segue sua vida, trabalho, casamento, filhos. As minhas amigas todas já são mães e eu acabei ficando de fora. Sempre festinha de aniversário de uma das crianças, programações infantis...

- Entendo. Mas será que se você as chamasse para tomar um café, ou ir ao cinema, não arranjariam um tempinho?

- De repente sim. Mas elas só tem a noite livre, normalmente, devido ao trabalho. À noite elas estão com os filhos, com os maridos.

- E no final de semana? Um jantar na casa de vocês?

- Pois é, esse é um ponto delicado. Lembra que o Carlos não gosta muito de gente na nossa casa, por conta da energia? Pois é. Ele não tem nada contra nenhuma delas nem dos maridos, mas ele diz que não tem muito assunto com eles. Acha minhas amigas fúteis e os maridos delas uns machistas.

- Sei...

- Pelo menos eu tenho meus pais e quase todo final de semana vamos almoçar ou na casa deles ou na casa dos pais do Carlos. Isso é o que ainda me anima. Carlos diz que eu deveria ser grata a Deus porque nem toda família se dá bem assim como a nossa. E ele tá certo.

- E quando vocês estão com as famílias… como ele se comporta?

- Normal. Educado. Quer dizer… às vezes ele fica mais calado, mas é porque ele disse que sente muita energia misturada. Não é bom pra sensibilidade dele.

(Silêncio curto)

- Mas ele vai. Ele faz o esforço dele.

- E você? Como se sente nesses encontros?

- Ah… eu gosto. É quando eu vejo gente, né?

(Desvia o olhar)

- Mas eu confesso que às vezes fico meio tensa. Com medo de falar alguma bobagem e ele ficar… irritado. 

- Que tipo de bobagem? 

- É que, quando chegamos em casa, às vezes ele comenta: “Você viu como você interrompeu várias vezes a sua mãe? Ainda bem que estávamos em família” ou “Você precisa aprender a conversar sem comentar nossas questões pessoais. Não falo aquele tipo de coisa nem pra minha família”. E eu fico pensando… se até com minha família eu faço feio, imagina com os outros!

- Você costuma abrir a intimidade de vocês pra sua família?

- Ah, eu sempre contei tudo pra minha mãe. Mas as coisas que compartilho são tipo: dívidas quando a gente faz alguma. Ou quando a gente briga e eu digo que não pudemos vir pois não estávamos num clima muito bom. Pra família dele, Deus me livre falar! Pra eles, estamos sempre bem e nunca brigamos. A imagem do Carlos pra família dele é intocável. Uma vez, logo que nos conhecemos, ele adoeceu e eu fui comentar com a mãe dele por telefone. O teto quase caiu sobre mim! 

- Me parece que você está sempre "pisando em ovos".

Marcela sorri constrangida.

- É para o meu bem. Ele sempre me ajudou a perceber padrões negativos meus. Que quer me ajudar a evoluir... e acredito que se ele tem tanto conhecimento, quero mesmo que aponte onde eu erro, do contrário como eu vou mudar?

- E quem aponta as falhas dele?

Marcela solta uma risada curta, quase defensiva.

- Ele não tem muitas. Pelo menos não comigo. Quer dizer… ele é mais fechado, né? Mais introspectivo. Mas é do jeito dele. E eu... sou essa bagunça ambulante.

- Você fala de si mesma como se fosse um problema a ser corrigido.

- Às vezes eu acho que sou mesmo. Parece que tudo parte de mim. O futebol, o sexo, as amizades, a maternidade, o meu humor, o meu jeito.

(Silêncio mais longo, a voz quase falha)

- Ele sempre diz que eu tenho uma "alma caótica". Que projeto nele todas as minhas frustrações e medos.

- E do que você teria medo?

Marcela engole seco.

- A ideia de... perder ele. De virar aquela mulher que todo mundo olha com pena porque “não segurou o marido”. Porque “era difícil demais”. Porque… porque era eu.

- E você já pensou na possibilidade de não ser sobre “segurar o marido”, mas sobre segurar a si mesma?

Marcela aperta as mãos no colo. O desconforto aumenta. 

- Você disse que ele quase não comete erros com você, certo? Mas... e quando ele erra, ele pede desculpas a você?

Ela não responde. A analista percebe a tensão e aguarda em silêncio. Não para acolher, mas para permitir que a sensação floresça.

- Eu não me recordo muito bem de quando ele falha comigo. Acho que porque eu tenho essa mania de sempre correr atrás dele primeiro. Detesto ficar brigada. E se eu deixar, ele fica dias sem falar comigo.

- E ele sendo tão... evoluído, não sabe que o diálogo é a melhor forma de resolver as coisas?

- Na verdade, ele diz que é justamente para deixar a poeira baixar. Que é melhor que esses casais aí que se inflamam e só faltam partir pra violência física. Ele também é bastante sensível e quando se magoa, leva um tempo até voltar ao normal.

- Interessante.

- Esses dias eu até me admirei que tive coragem de dizer: "Já reparou que sou sempre eu que venho pedir desculpas?" pra ver se ele percebia que não é possível eu sempre estar errada e ele certo em tudo.

- E ele?

- Acho que ele não entendeu, porque me respondeu: "Por que será, não é mesmo?!" Ele realmente acredita que o erro está em mim. Devo ter mesmo essa alma caótica...

- Marcela… numa relação, tudo é 50% pra cada. Até mesmo se um dos dois tiver mais razão em alguma briga. A responsabilidade de resolver é dos dois. Além do mais, se alguém que te ama, sente medo de te perder também, não acha? Você não acha que ele tem muito poder sobre você?

Marcela olha rápido, surpresa e defensiva, mas não diz nada. O silêncio agora é um espaço que ameaça ruir algo dentro dela.

- Ficamos por aqui hoje.

Marcela achou tudo aquilo muito estranho. Parecia que a analista estava querendo jogar mais lenha a fogueira ao invés de tentar ajudar. Fora que encerrar assim, no momento de maior tensão. E foi assim que decidiu nunca mais pisar em uma sessão de análise.

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