A porta




Foi em meio ao tédio de um dia totalmente ordinário, que minha mente - sempre furtiva e inquieta - me pregou uma peça. Pelo menos era isso que eu pensava. Primeiro tive uma visão bastante aleatória, quase como uma lembrança, dessas que nos tomam assim de repente. Era uma porta. Aberta. Com uma riqueza de detalhes tamanha que senti vontade de desenhá-la. Mas eu nunca tinha sido do desenho. Era das letras. Escritora amadora, mas raiz, dessas que carregam sempre consigo uma caneta e um bloquinho pra cima e pra baixo. Aliás, como eu era cuidadora de idosos, frequentemente me sobrava tempo para escrever, quando eles pegavam no sono.

Naquela noite, entretanto, o meu foco era uma vontade incontrolável de contornar, preencher, colorir. Me senti novamente com 8 anos de idade, na época de comprar material escolar. Dona Orlandina, uma simpática senhorinha de 87 anos de quem eu cuidava, tinha acabado de se recolher. Fui até a porta de seu quarto, dando uma rápida espiada para ver se estava tudo bem e segui pelo comprido corredor, passando de porta em porta: o quarto da filha (que havia se mudado após casar), o do filho (que hoje morava em outro país), o banheiro social e - por fim - o escritório do falecido Seu Damasceno. 

Entrei.

Tudo ali parecia intocado de propósito. A velha poltrona verde escura, já desbotada pelo tempo. A estante repleta de livros empoeirados, que Dona Orlandina não me deixava mexer nem para limpar (nunca questionei o motivo, não queria ser invasiva). A escrivaninha, com uma máquina de escrever antiga, uma pilha de folhas de papel A4 meio amareladas pelo tempo e um estojo de madeira... vermelho que destoava de tudo ali. Um ambiente noir, antigo, melancólico e um estojo com uma cor vibrante daquelas? Me chamou bastante a atenção e o peguei nas mãos. Dentro, haviam inúmeras canetinhas de ponta porosa. "Que delícia!", pensei e imediatamente depois estranhei o pensamento.

Enquanto isso, a porta continuava em minha mente. Então puxei a cadeira da escrivaninha, me sentei, peguei uma folha e dei vasão ao meu desejo. Fiz a porta do jeito que a imaginava: muito bonita, toda trabalhada, brilhosa, como se tivessem acabado de polir. Com a madeira espessa, de superfície rugosa e vários tons de marrom - inclusive, um deles me fez lembrar de chocolate e meu estômago roncou. Tinha jantado sopa e, àquela altura, já estava com fome novamente. Porém, não conseguia parar de pintar. Em dado momento até julguei não ter mais controle sobre minhas próprias mãos. Havia algo de diferente diferente acontecendo. Era quase mediúnico.

Não sei por quanto tempo fiquei pintando, mas não conseguirei esquecer jamais do momento exato em que terminei o desenho. Pois naquele instante, tudo ficou ainda mais esquisito. Os últimos rabiscos pareceram uma espécie de espelhamento tridimensional, se é que posso chamar assim. Enquanto eu pintava na folha, uma cópia do meu desenho se formava bem na minha frente. Ela estava ali, diante de mim, poucos centímetros acima da escrivaninha, como um holograma. 

Eu mal podia me mexer, tamanho meu espanto. Era uma imensidão azul escura, estrelada, parecida com um portal no meio do espaço sideral ou quem sabe outra dimensão. Me levantei devagar, com cuidado para não arrastar a cadeira e acordar a Dona Orlandina com o barulho. Subi com dificuldade em cima da escrivaninha, de forma a ficar exatamente em pé, na frente da misteriosa porta. Primeiro olhei bem de pertinho, como se quisesse sentir o material de que era feita - sem sucesso. Depois, fiz menção de que a tocaria, aproximando e afastando a mão algumas vezes. Como nada aconteceu, fui ainda mais longe, enfiei um braço. Nada. Tirei. “Bom, seja o que Deus quiser”, pensei. Foi então que tomei coragem, fechei os olhos e entrei num único e decidido salto.

Esperei o barulho da escrivaninha quebrando ao meio, os livros caindo da estante, Dona Orlandina acordando assustada, chamando meu nome: "Nazaré! Nazaré! O que houve?". Mas não teve nada disso. Só um ruído branco nos primeiros... segundos? Minutos? Também não saberia dizer. Onde estava agora o tempo parecia passar de maneira diferente. 

- Você não veio aqui para pintar. - uma voz feminina, grave, partia de algum lugar longe e perto ao mesmo tempo (juro que pra mim fazia sentido!). Como se viesse de dentro da minha própria cabeça. 

- Quem é você? - perguntei, curiosa, assustada.

- A pergunta que você quer me fazer não é essa. Você gostaria saber quem é VOCÊ, Nazaré.

- Hã? Como assim? - eu estava cada vez mais certa de que acordaria a qualquer instante, com baba no canto da boca, um livro caído no chão e o braço dormente.

- Quero dizer que você está aqui para se descobrir. Ou... descobrir o que poderia ter sido.

- Desculpe, mas eu realmente não estou entendendo. Onde estou?

- Essa é a porta do seu inconsciente, Nazaré. E aqui dentro, existem coisas que você conhece, outras que você desconfia e outras que você talvez você não estivesse pronta para ver ainda. Vou facilitar as coisas pra você.

Várias telas começaram a pipocar bem na minha frente, formando algo parecido com um enorme mural digital - imagens que me eram bem familiares: eu e meu marido, jovens; o dia do nosso casamento; o nascimento de cada um dos nossos filhos; a formatura deles; os casamentos deles; a chegada de nossos netos.

Outras imagens eu não conseguia reconhecer. Uma mulher parecida comigo, porém mais jovem. Era... eu. Eu autografando livros; eu dando entrevistas; eu segurando troféus dourados de prêmios que nunca existiram; prateleiras inteiras cheias de livros com meu nome estampado neles. Eu sorri, enquanto me imaginava vivenciando tudo aquilo. Mas em todas aquelas versões minhas, nenhum marido, nenhum filho, nenhum neto. 

Então meu peito apertou.

- Por que… só isso? - perguntei, quase num sussurro.

A voz não respondeu. E então outra telinha surgiu. Uma que eu não esperava.

Dona Orlandina, bem mais jovem. O marido ao lado. Ela lhe dá um selinho de boa noite, vai se deitar e ele fica. Então, ele começa a desenhar concentrado em um caderno. Uma porta enorme aparecia atrás dele, brilhando como se respirasse. E então, aos poucos, ele… atravessou.

- Meu Deus, ele não morreu. Ele... Atravessou.

A telinha desapareceu antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa.

A porta, agora atrás de mim, começou a vibrar, pulsando como se alguma interferência energética ameaçasse apagá-la a qualquer momento. 

De repente senti medo de nunca mais ver minha família. Eu quis voltar para minha vida como era, com tudo o que eu amava. Então imaginei a sensação de ter tudo o que sempre sonhei profissionalmente. E refleti comigo: "bem, não se sente falta do que nunca se teve, certo?" Que angustiante!

Meu corpo inteiro tremeu. Tentei dar um passo pra atrás, mas o chão se comportou como água. As holografias distorceram-se em riscos de tinta viva que escorriam pelo ar. A luz da porta cresceu, ofuscante.

- Eu ainda não...

Mas a porta não esperou minha escolha. A luz engoliu meu braço primeiro. Depois meu ombro. Quando chegou ao meu rosto, senti como se estivesse sendo puxada para dentro de mim mesma.

Desejei com todas as minhas forças escrever. Quis deixar algo. Uma carta, um relato, um aviso. Mas tudo desapareceu na enorme luz branca.



* Fim do livro encontrado aberto no chão do escritório de Seu Damasceno, desaparecido há alguns anos. Nenhum sinal de Dona Orlandina. Nem de acompanhante. Nenhuma mochila, nenhum celular, nenhum documento. Apenas o antigo estojo vermelho de canetinhas no chão, aberto e uma convidativa folha em branco ao lado.

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